Por: Maria do Socorro S. Aquino de Deus*
GREVE NA EDUCAÇÃO: CEM DIAS DE SOLIDÃO OU “EU QUERO TCHU”
Chegamos a cem dias de greve da
educação estadual, na Bahia. O que se pensou ser um movimento reivindicatório
por condições salariais mais dignas transformou-se na maior queda de braço
entre a categoria e o governo, jamais vista na Bahia. O governo, com todo seu
poderio de recursos, propaganda e corte de salários não conseguiu obrigar os
professores a voltarem às aulas sem que o acordo assinado com a categoria fosse
atendido.
Além do já sabido, a falta de valorização do profissional da educação, a greve dos professores mostra uma verdade assombrosa: o total desconhecimento por parte da sociedade do que acontece por trás dos portões das escolas públicas – incluindo os Poderes Legislativo e Judiciário e a imprensa. Quando se pronunciam, ou falam a partir de suposições, ou mentem, ou ficam em silêncio. Talvez esse silêncio por parte de muitos, um silêncio que pode ser visto como cúmplice e criminoso, seja vergonha em assumir o desconhecimento da real situação da educação no estado.
A mais gritante demonstração
de ignorância a esse respeito foi o texto da decisão liminar da desembargadora
Daisy Lago Coelho que, entre outras pérolas, diz: “Também se apresenta
verossímil, senão induvidoso, o grande prejuízo causado pela paralisação do
serviço público de educação não apenas à formação cívica e intelectual dos
estudantes, mas também ao desenvolvimento físico e à saúde destes, tendo em
vista a constatação de que a merenda escolar é, em muitas comunidades deste
Estado, o único alimento diário dos infantes”.
Tais afirmações
comprovam o desconhecimento total da realidade da educação na Bahia e uma visão
completamente equivocada da função da escola e da educação. Bem, considero que
a greve causa prejuízo a todos, sim, mas é consequência de um estado abusivo,
de como vem sendo tratada a educação, em tudo que esta envolve, e que parece
ser invisível para a sociedade. Muitas escolas funcionam precariamente, sem
professores para todas as disciplinas, sem livros didáticos suficientes, com as
instalações físicas em péssimo estado, transporte escolar caótico. A formação
cívica e intelectual dos alunos vem sofrendo grandes prejuízos há muito tempo!
A senhora desembargadora
acredita que um dos deveres fundamentais da escola é alimentar os “infantes”,
demonstrando uma visão preconceituosa e paternalista, para dizer o mínimo, a
respeito dos estudantes da escola pública. Que eu saiba - nos vinte anos que
dou aulas em escola pública, para alunos do Ensino Médio - a última coisa que
esperam da escola é uma refeição por dia.
Os estudantes têm fome
de muito mais que comida. Uma aluna me respondeu que “tchu” é tudo de bom, é
ser feliz e realizar todos os sonhos. Eles esperam que a escola seja uma etapa
para chegar a uma universidade ou a um curso técnico que os habilitem a entrar
no mercado de trabalho. Anseiam passar no ENEM para conseguir acesso às bolsas
de estudo. Ademais, pelo menos na escola em que sou lotada, não teve merenda um
só dia deste ano letivo e, se a greve tivesse acabado, até hoje, a situação
seria a mesma.
O que mais me surpreende
é o pouco caso com que as autoridades e a imprensa em geral estão tratando o
caso. Políticos preocupados com a corrida eleitoreira e a imprensa com notícias
parciais, aceitando divulgar inverdades a respeito dos professores, de forma
insensata e leviana. Vi professores chorando de indignação e vergonha, mas
resistindo bravamente. A greve é um grito de Chega dos professores. Grito
ouvido por poucos e tratado de forma desrespeitosa pelos responsáveis pela
resolução do problema.
Daí a sensação de cem
dias de solidão. Cada professor conta com sua força e sua convicção para
manter-se incorruptível, mesmo com salários cortados e as dificuldades a bater
à porta. E contam uns com os outros, em uma demonstração de solidariedade que
fortalece o que acredito ser o papel da educação: não perder a capacidade de
indignar-se, ser moralmente capaz de sustentar o que se ensina nos duzentos
dias letivos de todos os anos da vida profissional, ser capaz de lutar pelo que
acredita e inspirar isso nos alunos. Não estamos na escola para ensinar
conteúdos apenas, pois estes mudam, assim como muda o mundo. Estamos na escola
para ensinarmos, também, que é possível construir uma sociedade justa e
igualitária e que para tal acontecer é preciso lutar.
Assim, vivenciamos essa
solidão que cerca a educação pública e todo aparato midiático que a reforça,
destacando manchetes pífias e divulgando notícias sensacionalistas que têm
sempre como protagonistas os mesmos atores – jovens negros e negras de
comunidades periféricas – reforçando um estado de coisas que parece imutável.
Um sensacionalismo que esconde o silêncio perante questões realmente
importantes.
Quem se importa? De
verdade? Afinal, como disse Caetano: “Como é que pretos, pobres e mulatos / E
quase brancos quase pretos de tão pobres são tratados (...)”. Pois é, na escola
pública são quase todos pretos ou quase pretos de tão pobres.
* Professora da rede
estadual de ensino. Mestra em Estudo de Linguagens.
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